Vida eremítica franciscana na origem do franciscanismo
O que movia o coração de Francisco nesta busca pelo deserto é justamente o desejo de uma busca intensa de intimidade com o Senhor pobre e crucificado.
Por Frei Mendelson Branco, OFM
21/08/2021
Muitos que admiram o carisma franciscano e até mesmo franciscanos e franciscanas que são membros deste carisma podem não conhecer uma face desta espiritualidade muito importante para a Ordem, face esta que muitas vezes o próprio São Francisco de Assis fez profundas experiencias espirituais que por muitas vezes faziam arder seu coração. Estou me referindo a vida eremítica franciscana, a qual Francisco dedicou uma pequena regra aos que desejarem viver esta forma do carisma, vamos então olhar e conhecer esta pérola preciosa e por muitos desconhecida.
A Vida eremítica possui uma longa história dentro do seio da Igreja tendo popularmente Santo Antão como pai e modelo dos eremitas, a vida eremítica explicada em poucas palavras é o chamado a viver a espiritualidade do deserto mas não um deserto sem sentido vazio, mas buscar a voz de Deus neste deserto. A vida eremítica não é uma novidade na Ordem Franciscana, ela remonta a origem do franciscanismo, pois ecoou muito forte no coração de São Francisco de Assis logo no início de sua caminhada de conversão como nos indica o dicionário franciscano (1983, p.837):
Nos primeiros anos da sua conversão, Francisco vive à maneira dos eremitas, vestindo inclusive o hábito de penitente e oblato; Assim em São Damião, primeiro vivendo escondidamente e depois iniciando a restauração, aprofunda o colóquio de amor que Cristo iniciara com ele ali; no terceiro ano restaura a Porciúncula e finalmente conhecerá através do Evangelho da missão, qual deve ser sua missão-vocação; e mesmo quando tiver companheiros e tiver obtido a Porciúncula dos beneditinos do Subásio como sua morada, a vida ali conservará aquela atmosfera de eremitério: silencio, contemplação, pobreza.
Este chamado ao deserto da vida eremítica encontrava no coração de São Francisco de Assis um terreno fértil, onde muitas vezes se retirava em recolhimento, o que movia o coração de Francisco nesta busca pelo deserto é justamente o desejo de uma busca intensa de intimidade com o Senhor pobre e crucificado, isso porque Francisco é um homem em prontidão, sedento e atento para ouvir o que o Senhor deseja. Nas Fontes Franciscana encontramos uma passagem do livro do Espelho da Perfeição, que traduz o quanto Francisco de Assis se mantinha a todo o momento em vigilância com o Senhor, mesmo quando longe dos locais ermos ele carregava o eremitério em seu coração, isso nos faz contemplar o quanto Francisco conseguiu equilibrar a vida eremítica na dinâmica da contemplação em seu peregrinar do anuncio do Evangelho.
“Mesmo que estejais andando, vossa conversa seja tão digna como se estivésseis no eremitério ou na cela, porque onde quer que estejamos e andemos, temos sempre a cela conosco, pois o irmão corpo é nossa cela, e a alma é o eremita que mora na cela para orar a Deus e meditar. Pois, se a alma não permanecer tranquila e solícita na sua cela, pouco proveito terá o religioso numa cela feita com as mãos” (Espelho da Perfeição Menor 37, 3-5)
Aos poucos o próprio Pai Seráfico harmonizou de forma maestral a vida de contemplação e ação, esta profunda inclinação eremítica de São Francisco de Assis está presente desde os primórdios da Ordem dos Frades Menores, como nos aponta a obra do dicionário franciscano (1983, p.837):
Quando o Senhor lhe dá companheiros e irmãos, logo os conduz a estes lugares de solidão; foi assim que nasceram os eremitérios franciscanos, que terão tanto peso espiritual na vida e na história da sua ordem: A sede de solidão que caracteriza a vida de Francisco se torna paixão para seus seguidores, mesmo tendo sido conclamados à evangelização do mundo inteiro: e é esta ânsia que lhe inspirará uma forma singular de eremitismo no mundo.
São Francisco de Assis em seu anseio pela contemplação irá encontrar locais ermos para sua prática do deserto, sejam em grutas, selvas, bosques e montanhas solitárias que serão lugares especiais para o diálogo com o Senhor, locais como em Greccio, Alverne, Fonte Colombo e outros locais que com o passar do tempo se transformaram em conventos “a começar por Rivo Torto, que nada mais era que uma palhoça em pleno bosque, tão apertado que era necessário escrever os nomes dos Frades nos barrotes para que pudessem sem perturbação, vigiar em oração ou repousar durante a noite” (Dicionário Franciscano, p.387).
REGRA DO EREMITISMO FRANCISCANO
O eremitismo franciscano é “profundamente evangélico e permanece sempre aberto ao mundo – embora reconhecendo a necessidade de que seja mantido certo distanciamento e certa perspectiva.” (MERTON, p. 245). A vida eremítica tinha uma importância tão enraizada no coração dos primeiros frades que recebeu de São Francisco de Assis uma pequena regra que “Segundo Esser e Paolazzi, a elaboração desse texto que Francisco consagra à vida eremítica situa-se entre os anos 1217/18 e 1221, levando-se em consideração que, no período de 1219/1220, o Poverello esteve nas terras do Oriente. O pequeno escrito deve ter sido composto pouco antes ou pouco depois destas datas.” (GUIMARÃES). A pequena regra direciona a forma que tais frades deveriam viver a dinâmica do eremitismo franciscano, que tem características muito peculiares como por exemplo o eremita franciscano vive a dinâmica da fraternidade com relação maternal entre os irmãos, esse aspecto maternal é fruto de sua experiência marcante de Francisco com sua mãe, podemos sentir esta espiritualidade logo nas primeiras linhas da Regra Eremítica franciscana.
“Aqueles que querem viver religiosamente nos eremitérios sejam três irmãos ou no máximo quatro, dois deles sejam as mães e tenham dois filhos ou um pelo menos. Esses dois, que são as mães, levem a vida de Marta, e os dois filhos levem a vida de Maria (cf Lc 10, 38-42) e tenham um claustro em que cada um tenha sua pequena cela para rezar e dormir” (1-2).
Nesta dinâmica (Marta e Maria) que busca raízes no Santo Evangelho observa-se o cuidado e zelo que se deve cultivar mutuamente entre os frades que vivem no eremitério, tanto o zelo fraterno, como o zelo pela oração no deserto (ermo), comunitária, e também no trabalho simples para que seja também evitado o ócio.
“Os irmãos que são as mães fiquem afastados de toda pessoa estranha e em obediência ao seu ministro conservem também os seus filhos afastados de todos para que ninguém fale com eles. Os filhos por sua vez não podem falar com ninguém senão com suas mães e seu ministro e custódio quando a este lhe aprouver visitá-los, com a bênção de Deus.”
Também pode-se observar a dinâmica entre oração e trabalho, quando se observa a alternância entre a vida de Marta e Maria como nos apontam as linhas da Regra para Eremitérios: “Os filhos [Maria] assumam de vez em quando o encargo das mães [Marta] conforme os turnos que todos acharam conveniente estabelecer.”, nessa alternância possui fortes características franciscanas na observância da relação fraterna/materna, características estas que não encontramos em uma tradição anterior, logo São Francisco de Assis contribui então para uma novidade na espiritualidade eremítica.
Na vida eremítica, o carisma franciscano encontrou frutífero terreno em sua origem, e deixou profunda herança na forma de busca de intimidade com Deus através da oração, Francisco de Assis, foi um jovem medieval com um espírito profundamente contemplativo, foi essa capacidade de oração e contemplação que recebeu de Tomaz de Celano o destaque que ele era “não só o orante, mas a própria oração” (2Cel 95), buscando vivenciar intensamente esta relação intima com o Cristo desde que sentiu o chamado do Senhor em sua vida como diz Michel Hubaut: “A partir desse dia (um pouco antes da conversão), inaugura-se na vida de Francisco um tempo de silêncio. Sim, uma imperiosa necessidade de silêncio toma conta dele. Procura afastar-se da agitação mundana e do mundo dos negócios. Esforça-se, segundo a expressão de Tomás de Celano, ‘por reter Cristo em seu interior” (1Cel 6). e recomendava seus irmãos e irmãs que cultivassem o espírito de oração e devoção.
Frei Mendelson Branco da Silva, OFM (in memoriam)
Aqui externamos toda a nossa gratidão pelos serviços prestados a este sistema de comunicação.
REFERÊNCIA BIBLIOGÁFICA
CAROLI, Ernesto (coord.). Dicionário Franciscano. 1ª edição. ed. Petrópolis, RJ: CEPEFAL, 1993.
GUIMARÃES, Frei Almir. Francisco, homem feito oração. [S. l.], [20-?]. Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/francisco-homem-feito-oracao.html#gsc.tab=0. Acesso em: 11 maio 2021.
GUIMARÃES, Frei Almir. Frei Almir comenta a Regra para os eremitérios. [S. l.], [20-?]. Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/regra-para-os-eremiterios.html#gsc.tab=0. Acesso em: 11 maio 2021.
MERTON, Thomaz. Contemplação num mundo de ação, Vozes, Petrópolis,
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